Por onde andará Stephen Fry?
Por Luís Antônio Giron
O CD de estréia do cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro é uma prova do rigor da música pop brasileira do fim dos anos 90. Seu estilo peculiar se nutre do reggae, bumba-meu-boi, carimbó e do folclore do Norte para elaborar músicas que apoiam para duas nascentes; a da canção como forma primordial de desenvolver a obra artística e a do diálogo com as tendências contemporâneas.
“POR ONDE ANDARÁ STEPHEN FRY?” afirma uma estética bifronte, herdeira remota do trópico, só que sem pretensões intelectuais exacerbadas. A música de Zeca Baleiro enche a inteligência e os forrós. Cada uma das 13 faixas do disco representa uma aventura poética e sonora. Zeca é acompanhado pela banda Mandabala de seis integrantes. O disco foi produzido por Foguete, Ricardo Leão, ele próprio e gravado entre dezembro de
Entre canções e invenções, desenrolam-se o metal-repente diabólico “Heavy Metal do Senhor”, o carimbó “Pedra de Responsa” ( gravado anteriormente por Chico César)-um genuíno clássico de um gênero quase sem clássicos- e o partido-alto “Kid Vinil, exaltação irônica ao fascínio que a Internet e a globalização exercem sobre os consumidores. Revezam-se canções lentas sérias, como Bandeira , Flor da Pele e Stephen Fry (referência ao ator inglês), e sarcásticas (Salão de Beleza), reggaes (Dodói) e referências ao passado. Destas destacam-se o bumba-meu-boi “Essas emoções”, do compositor maranhense Donato Alves, talhado no sotaque de orquestras , mas lento, quase rumbado. No conjunto de “Por Onde Andará Stephen Fry”, uma nova música brasileira se faz sentir.
Aos 31 anos de idade e doze de carreira underground, Zeca Baleiro é o primeiro compositor amazônico a chegar à era digital com uma proposta densa e contemporânea .Criado na cidade de Arari, próxima a São Luís , José de Ribamar Coelho Santos teve como maior influência o aparelho de rádio marca Transglobe de seu pai, um farmacêutico supercatólico que levava a família para participar de procissões e festas religiosas. Ali se encontravam cantadores cegos, repentistas, poetas de cordel e, naturalmente, os coros de ladainhas. Os rituais de rua seduziram Zeca, mas o rádio o encantou ainda mais. Ouvia todo tipo de música; reggae, rock e rumba de emissoras do Caribe; MPB de rádios do interior de São Paulo; carimbós do Pará; bois de São Luís. Zeca e família se mudaram para capital em 1974 começou a tocar violão sozinho, interpretando João do Vale, Luiz Gonzaga, Fagner e Ednardo. Quando chegou a época, entrou na faculdade de Agronomia, desistiu, trocou pelo Jornalismo mas não se sentiu bem. Na universidade os colegas os apelidaram Zeca Baleiro, porque vivia comendo balas e doces, mania que mantém até hoje.
Aos 19 anos, num festival estudantil, subiu pela primeira vez num palco e percebeu que era o lugar. Apresentou um samba-de-breque de sua autoria, com bom sucesso. Começou então a apresentar suas músicas na rádio Mirante, do agitador cultural Celso Borges. Em 1986, passou um tempo
Zeca batalhou em shows, gravou fitas-demos, teve canções divulgadas por Vange Milliet, Rita Ribeiro e Chico César em discos e espetáculos. Finalmente, foi chamado por Mazzola a gravar seu primeiro CD. Nesse meio tempo, conseguiu reunir uma obra de mais de 400 composições, um número impressionante para um músico de sua idade. “Por Onde Andará Stephen Fry” é o começo amadurecido de um grande músico.
PetShopMundoCão
É desafiador começar a caminhada sem saber onde chegar, "o importante é ir", falou o poeta beat. sabia que queria fazer uso da eletrônica, mas sem afetação, sem forjar uma afinidade que não existisse, como uma ferramenta, não como o ferro. Nunca me enganei comigo, sou um compositor popular.
As canções foram surgindo naturalmente, uma a uma, algumas acabadas, outras aos pedaços, nos quartos de hotel, no meio da estrada, no interior do Brasil, nas lanchonetes de aeroporto, por onde passasse ia coletando visões, versos, melodias.
À medida que nasciam, percebia um elo, uma liga entre elas, aquilo que os mais afoitos chamariam de conceito, mas que eu prefiro chamar de alma.
Parceiros chegaram a mim com a mesma naturalidade ¬ Sérgio natureza e Mathilda Kóvak, gente que admiro e com quem já componho há anos mas de quem nunca havia gravado canção alguma (foi uma letra do Sérgio, aliás, que me inspirou o título deste CD, cujo texto finalizamos a quatro mãos. a canção, extensa, por obra e força do acaso, virou uma vinheta, um emblema do disco); Capinan, que não conheço pessoalmente (nos tornamos parceiros pelas mãos do Fagner) ¬ me mandou duas ótimas letras, uma das quais está aqui. Celso Borges e Fernando Abreu, poetas conterrâneos, parceiros de outros tempos, também se apresentaram.
Ramiro Musotto, Érico Theobaldo e Jongui, produtores que formataram o disco junto comigo, também surgiram sem muito plano, sem cálculo. Quando me dei conta, estava fazendo o disco com eles, burilando levadas, acordes, texturas.
Ramiro é presença constante nos meus discos, desde o primeiro que ele participa como músico. Agora, pela primeira vez, chamei-o para trabalhar como produtor. é homem de muitos batuques, argentino de bahia blanca que um dia aportou na bahia preta e ficou.
Érico é outro velho colaborador. Uma das partes da dupla eletrônica autoload, fez algumas programações no meu segundo disco, "vô imbolá".
Jongui, conheci quando gravei participação no disco "a vida é doce", do lobão, do qual ele era um dos produtores. Todos entraram de cabeça na aventura de fazer um disco que transitasse por muitos territórios sem pertencer a nenhum.
Outras figuras de vital importância, evaldo luna, walter costa, leonardo nakabayashi e damien seth, deram todo o suporte técnico, mas não só. os arranjos feitos a muitas mãos, com a interferência de todos os músicos convidados, o disco foi se fazendo.
Chega uma hora quando se faz um disco que parece que ele ganha vida própria, não está mais sob seu controle. Assim se deu com este aqui.
Tinha pensado em poucas participações, e de repente era uma pequena multidão na ficha técnica: quando vi, karnak, totonho e os cabra e elba já estavam lá, num vocal alucinado em "drumembêis", carlos dafé com seu banzo soul em "mundo dos negócios".
Os grupos 3 preto, do rio, e z'áfrica brasil, de sampa, gente do hip hop com quem sinto grande afinidade, também mandaram o seu recado.
Vange Milliet, uma das minhas primeiras parceiras no mundo cão paulistano, as gatas, grupo vocal de samba, do qual sou fã declarado, o compositor maranhense Antonio Vieira, que leu texto do padre xará, e mais músicos de todas as tribos, legiões e credos.
Textos do poeta maranhense Sousândrade ecoaram nas vozes de poetas parceiros, o bumba-meu-boi de ribamar enviou batalhão pesado e percussionistas da casa das minas de são luís vieram bater tambor, com a devida permissão dos santos.
Aldo Brizzi e Eduardo Souto Neto, maestros artistas, mandaram ver nas cordas, cravaram tiro certo no peito, e tiquinho trouxe a metaleira do funk como le gusta pra animar o baile.
Assim eu pensava que havia fechado o périplo de gravações. mas eis que um dia liga a lucinha, mulher do arnaldo baptista, e fala: "a gente tá aqui em são paulo e quer ir aí no estúdio, dar uma sapeada!". e foram lá e o papo rolou horas a fio sobre música e assuntos vários, balada que se prolongou noite adentro num bar perdido da vila madalena.
Dias depois, após vencer uma certa timidez, escrevi pra lucinha ¬ "andei pensando se o arnaldo não toparia fazer um piano lá no meu disco, que que você acha, é viagem ou tem futuro?" ela respondeu de lá ¬ "o arnaldo gostou da idéia, não é viagem não!".
Aí, aos 47 minutos do segundo tempo, chegou o arnaldo. Tocou, tocou e falou: "tá uma loucura, depois vocês montam aí!" era um piano muito louco mesmo... E muito lindo!
Agora sim, parecia que era mesmo o fim, mas é sempre mais difícil acabar um disco do que começá-lo, e ainda gastamos algumas noites frias devotados à conclusão dessa epopéia.
Eu havia jurado pra mim mesmo que dessa vez faria um disco compacto, homogêneo, centrado, etecetera, que não faria um disco com síndrome de múltipla personalidade, como alguns cds anteriores. Consumado o ato, só agora me dou conta de que não consegui, e o curioso é que me sinto estranhamente feliz por isso.
Este disco poderia ser um testamento, mas uma palavra solene como essa não cabe aqui, e tampouco passa pela minha cabeça morrer tão cedo.
Saravá, mundo cão!
São Paulo fria, 11 de julho de 2002, no urro da lacraia.
* berrante - 1. cuja cor é muito viva; espantado, chamativo 2. que berra.
Líricas
Por Celso Borges
Por essa ninguém esperava. Depois de lançar dois discos dentro da estética pop, Por onde andará Stephen Fry?(1997) e Vô Imbolá (1999), em que misturou ritmos diversos com roupagem eletrônica, e quando todo mundo pensava que ele iria continuar nessa trilha, o compositor maranhense Zeca Baleiro assume a contramão e chega ao seu terceiro trabalho - Líricas (MZA-Universal) - com um disco de canções baseado na tríade amor, saudade e desconforto com o estabelecido.
"Momentaneamente cansei do pop. Senti que ele quase sufocou o meu discurso. Em Líricas, privilegio as letras sem menosprezar a musicalidade. Tive uma preocupação em construir uma temática mais homogênea. Na verdade quis enfatizar meu lado lírico. Eu só faço música por causa da poesia", confessa o artista.
Composto por 12 faixas, o disco tem uma unidade clara, carregado de uma certa melancolia, presença marcante na alma do poeta que Zeca é. São canções de estrada de gêneros diversos: blues, balada, valsa, morna. Todas foram compostas depois que o artista mudou-se pra São Paulo, no início dos anos
Produzido pelo próprio compositor, Líricas é um disco sentimental, emocionado, cheio de saudades, mas nunca saudosista. Zeca mistura esse feeling com elementos urbanos atuais: metrô, coleções de inverno, lojas de conveniência, e sai pelo mundo afora. Não é à toa que a palavra "estrada" aparece em várias músicas. A viagem sonora e poética que constrói lembra, em alguns momentos, a de outros trovadores como Leonard Cohen, Bob Dylan, Zé Ramalho e Ednardo. É quase um filme em preto e branco falando de um lugar qualquer, ora imaginário, ora real.
Zeca faz um retrato crítico e irônico desse mundo, com seus ícones e personagens anônimos, seus desesperos e outonos, suas estradas, seus amores. Mas o compositor não quer com isso fazer apologia do pessimismo. "Não sou um cético. Tenho esperanças. Minha poesia embrulha a dor e a melancolia com uma carga de lirismo que afirma isso. As canções de amor, por exemplo, são todas afirmativas".
O CD abre com Minha casa, uma nítida canção de esperança, que tenta preservar alguns valores já esquecidos: Quero no escuro / como um cego tatear estrelas distraídas. A música tem a participação especial de Flávio Guimarães (Blues Etílicos) tocando gaita. Nas 11 faixas seguintes, consolida-se uma unidade poética presente em todo o trabalho. Babylon (faixa 4) veste com ironia e acidez uma canção meio reggae, meio morna. Utilizando ícones da Babilônia, símbolo-rasta da sociedade injusta e capitalista, Zeca convida seu amor para ir morar em Babylon e lá usufruir do bom e do melhor: Baby, I'm so alone, vamos pra Babylon / Viver a pão de ló e Moët Chandon / Vamos pra Babylon / Comprar o que houver / Au revoir ralé...
A mesma ironia está presente em outras faixas: Balada para Giorgio Armani, título inspirado num clima western spaguetti, é uma canção bluesy em que o compositor conversa imaginariamente com o estilista Giorgio Armani: Giorgio, eu sinto medo na longa estrada/O medo é a moda desta triste temporada/ ...Quando um dia enfim findar este outono eterno / Quero que você me aqueça com a sua coleção de inverno. A contundência do discurso de Zeca atinge seu auge em Você só pensa em grana (faixa 9). O arranjo é simples, voz e piano, e a interpretação arrebatadora: Você rasga os poemas que eu te dou / mas nunca vi você rasgar dinheiro /... Você me fala entre dentes: poeta bom, meu bem, poeta morto.
Mas nem só de acidez e ironia se compõe o disco. Quatro faixas são canções de amor: Comigo, uma balada de estrada, meio rock, meio folk: Você vai comigo aonde eu for / Você vai bem se vem comigo / Serei teu amigo e teu bem / Fica bem, mas fica só comigo; Proibida pra mim (faixa 3), sucesso do grupo Charlie Brown Jr, que recebe uma versão folk; Nalgum lugar (faixa 7), uma canção cheia de delicadeza composta a partir de uma tradução de Augusto de Campos para um poema do escritor norte-americano e.e. cummings... Só uma parte de mim compreende que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas ; Quase nada, letra da poetisa Alice Ruiz, é uma canção simples e radiofônica: De você sei quase nada /... Nem mesmo sei / qual é a parte / da tua estrada / no meu caminho.
O lirismo do novo disco de Zeca Baleiro atinge um dos seus pontos altos na canção Ê Boi (faixa 6), uma paródia sentimental das toadas de bumba-meu-boi do Maranhão que tem a participação especial de Nosly, antigo parceiro do compositor, com quem subiu ao palco pela primeira vez,
O disco se completa com Banguela e Blues de elevador. A primeira, meio abolerada, tem a participação especial de Ná Ozzetti e letra bem ao estilo de Zeca, irônica e com rimas inteligentes: Tudo que é urso hiberna / Tudo que é peito sangra / Bomba de Hiroshima explodirá
Vô Imbóla
Por Lauro Lisboa Garcia - Março/99
Zeca Baleiro, Novos Baianos, João Bosco, Legião Urbana, Planet Hemp, Gilberto Gil, Gal Costa, Belchior, Paralamas do Sucesso, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho. São poucos, mas, significativos, os casos na música brasileira popular em que o segundo disco de um artista que estreou causando boa impressão supera o primeiro. O compositor e cantor maranhense, Zeca Baleiro, com "Vô Imbolá",vem juntar-se aos nomes citados como bom exemplo de vitória sobre a tão propalada "síndrome do segundo disco".
Com o reforço das 70 mil cópias vendidas de "Por onde andará Stephen Fry ?" (1997) - uma marca mais que razoável para um estreante no mercado discográfico que não faz os gêneros da hora -, Zeca diz que ganhou "mais moral" para poder trabalhar com calma.
Vô Imbolá (MZA Music/Universal) começou a ser gravado em abril de 1998, com previsão de chegar às lojas no segundo semestre daquele ano. Com as mudanças de planos da gravadora, o lançamento foi adiado e Zeca o retomou em julho para terminar em janeiro de 1999. Nesse meio tempo, sentiu o gosto da popularidade ao repercutir sua participação no disco "Acústico", de Gal Costa, Zeca havia homenageado a canção "Vapor Barato" (Jards Macalé/Wally Salomão) em "Flor da Pele", de seu primeiro disco, utilizando até um sample da gravação da cantora, de 1971. Além disso, tinham Mazzola como ponto comum, que produziu os discos de ambos. Ela gostou tanto que decidiu retribuir a homenagem.
Coincidência ou não, Zeca divide a produção de Vô Imbolá com , além de Mazzola, Celso Fonseca, responsável pelo disco seguinte de Gal , "Aquele Frevo Axé", e também pelos dois da cantora Daúde. Nesses trabalhos, Fonseca imprimiu marca própria, que coincidiu com que Zeca tinha esboçado no primeiro disco e aprimorou no atual: conciliar a canção melodiosa de estrutura convencional, brasileira, com a utilização de programação eletrônica e multiplicidade rítmica planetária.
Zeca atua como um centro magnético em constante rotação, com o aprendizado do pioneirismo de Noel Rosa, a influência caribenha da programação das rádios do Maranhão, a reinvenção dos princípios tropicalistas dos anos 60 e idéia de parabólica na lama,do movimento "mangue beat".
Os exemplos nesse sentido são fartos
O batuque Nega Tu Dá no Couro, com ritmo marcado por programação eletrônica, remete ao repertório de Carmem Miranda por meio do clarinete de Dirceu Leitte. A faixa é dedicada a Dorival Caymmi e a Antônio Vieira, veterano compositor maranhense, autor de "Cocada" e "Tem Quem Queira", gravadas por Rita Ribeiro. Semba (nome do ritmo ancestral do samba) é um misto de merengue, carimbó, lambada, tambor de crioula e trance.
Samba do Approach tem uma breve citação de country music na introdução para reforçar a intenção da letra. Boi de Haxixe é um tema de bumba-meu-boi com teclados psicodélicos (o título é um trocadilho da droga com a cidade de origem do bumba-meu-boi, Axixá, tirando proveito da "letra delirante").
Muitas características de seu primeiro trabalho são novamente desenvolvidas neste que tem a marca da diversidade típica dos anos 90, em que pesa o acúmulo de informações e a dificuldade de definição.
Mesmo com tudo isso, o autor diz que o procedimento é "muito brasileiro". Tem muita programação eletrônica , mas em nenhum momento cheguei no estúdio pensando em Trick ou Björk. Tudo foi feito na perspectiva do Brasil, tem uma alquimia muito grande. "A solução é aliar tradição e modernidade. “A música é bem capaz dessa ponte entre passado e futuro. Só dá para ser moderno com embasamento histórico. Tenho conhecimento mínimo que me permite transitar com desenvoltura entre um e outro".
Como um Chacrinha atualizado, ele não veio para explicar. Vô Imbolá (corruptela de embolar), não foi escolhido como título do disco e da faixa de abertura por acaso. É a senha para a amplitude sonora que se segue.
No encarte do CD, Zeca esclarece didaticamente os significados do verbo: cantar embolada, improvisar, fazer o bolo, misturar, emaranhar, confundir, enredar. "O universo musical brasileiro é tão amplo que me vejo movido a lançar mão de tudo para me expressar. A coisa da fusão me preocupa um pouco porque foi ficando óbvio demais. Música sugere liberdade de expressão e a gente está vivendo um tempo em que tudo é muito previsível".
Preferindo causar surpresa e susto, Zeca deita na diversidade além do ritmo contando com um elenco de convidados peculiares: o trovador apocalíptico Zé Ramalho, o bamba do partido-alto Zeca Pagodinho, o grupo de rap do Recife Faces do Subúrbio e o Grupo Folclórico Beneficente Bumba-Meu-Boi de Axixá.
Os três primeiros participam de canções já bastante testadas nos shows, o que contribuiu para sua inclusão no CD. Coincidentemente, eles interpretam três das letras mais ácidas do repertório. O repente Bienal é uma bem-humorada crítica - reforçada pelo tom apocalíptico dos cordéis com que o autor e o convidado Zé Ramalho têm familiaridade desde a infância - à terminologia dos artistas plásticos para tentar esclarecer sua arte aos leigos. Zeca fez letra inspirado no tema da Bienal Internacional de São Paulo de 1996, cujo tema era "A Desmaterialização da obra de Arte no Fim do Milênio".
Samba do Approach ironiza o excesso de expressões em inglês na linguagem cotidiana brasileira, da mesma maneira que "Kid Vinil" (também um samba), do disco anterior, centrava o foco na obsessão pela tecnologia informatizada.
O rap Piercing foi feito como desabafo num momento de indignação: "Há uma banalização da idéia da modernidade", diz Zeca. "Nada contra o piercing em si, mas o que ele representa: a decadência filosófica. O princípio do piercing é o do sacrifício, do autoflagelo como meio de elevação espiritual. Hoje é meramente cosmético, metáfora do empobrecimento intelectual."
No contrafluxo dessa banalização, Zeca homenageia a resistência dos malditos, ao mesmo tempo que ironiza a falência de seus ideais. Em Maldição, ele recorre ao poeta Charles Baudelaire, os compositores Jards Macalé, Itamar Assumpção e Luiz Melodia, o ex-líder sindical Vicente Paulo da Silva, a deputada federal Luiza Erundina, o escritor Edgar Allan Poe, o pintor Van Gogh: "Quando coloco essas pessoas no mesmo balaio, é como se eu as tratasse como uma espécie vencida pela mediocridade dos outros".
Entre achados líricos e sonoros e profusões de trocadilhos, uma de suas especialidades, Zeca Baleiro, com Vô Imbolá, passa pelo teste de resistência, com todas as cobranças e responsabilidades que envolvem um segundo trabalho. Sem querer com isso provocar nenhuma ruptura ("sou mais pelo diálogo sem preconceito"), é uma das caras marcantes entre as muitas da musicália brasileira do fim do século.
Raimundo Fagner e Zeca Baleiro
Por Okky de Souza
Quando dois artistas de carreira consolidada e brilho próprio resolvem se juntar para gravar um disco ou pisar num palco, quase sempre o resultado é a exibição de seus dotes individuais. O ouvinte leva dois pelo preço de um. O CD Raimundo Fagner e Zeca Baleiro é um daqueles raros casos em que a união de dois artistas resulta numa terceira entidade, na qual os estilos se combinam e entrelaçam de tal forma que se torna impossível saber quem faz o que em cada faixa.
Esse ser híbrido que agora surge, meio Fagner meio Baleiro, meio Ceará meio Maranhão, meio romantismo meio acidez, meio 30 anos de carreira meio 7 de estrada, assina um CD muito bom. Eclético e cheio de surpresas, mas de concepção simples e despretensiosa, ele combina canções praieiras e sambas, temas como o futebol e a violência urbana, e ainda uma dose considerável de humor.
O resultado do disco se deve, em grande parte, à maneira como ele foi concebido. Fagner e Zeca Baleiro são hoje os dois maiores compositores da música nordestina de suas gerações. Seria natural que produtores, empresários ou gravadoras engendrassem esse encontro entre ambos por enxergar nele um negócio lucrativo. Mas o CD nasceu como acontecia antigamente do prazer dos dois artistas em compor e tocar juntos.
O disco foi gravado de forma independente, aos poucos e sem pressa, num estúdio que Fagner montou recentemente
A dupla se conheceu há dois anos, quando Fagner, incentivado por um amigo, foi a um show de Baleiro para conferir o trabalho do sujeito sobre o qual todo mundo estava falando. Gostou do que ouviu e tempos depois foi cumprimentá-lo quando o Zeca se apresentou
"Sempre tive parceiros que são apenas letristas, eu mandava a música ou musicava a letra que recebia", comenta Fagner. "Com o Zeca é totalmente diferente porque ele toca, compõe e escreve a gente chega junto e não perde tempo, é uma troca rápida", ele completa. "Há uma alquimia, uma fluência muito forte entre a gente", concorda Zeca Baleiro. "E também, apesar da diferença de gerações, muitas afinidades: ambos possuímos ascendência árabe, tivemos uma infância interiorana, adoramos futebol e... um bom copo!" A parceria foi selada numa série de sete shows pelo Brasil, com apenas dois músicos no acompanhamento uma espécie de teste para ver se o público tinha o mesmo prazer em ouvir o trabalho do que eles em realizá-lo.
Raimundo Fagner e Zeca Baleiro abre e fecha com canções muito peculiares. A primeira faixa, Canhoteiro é uma homenagem ao jogador homônimo, um maranhense que nos anos 60 fez carreira no Ceará, depois
Outra faixa surpreendente é Três Irmãos, versão de Fausto Nilo para uma canção francesa do século XVI. Sua longa letra é um épico sobre a violência que grassa nas grandes cidades brasileiras, cheia de imagens fortes e densamente poéticas. Um Real de Amor é uma das grandes delícias do disco, um samba bem ao estilo de Nélson Cavaquinho apenas sem as letras sempre depressivas do mestre carioca. Daqui Pra Lá De Lá Pra Cá traz uma parceria inusitada entre Fagner, Zeca Baleiro e Torquato Neto, o poeta e letrista da Tropicália que se suicidou em 1972. Há vinte anos, a viúva de Torquato confiou a letra a Fagner, que nunca a havia musicado. Resolveu tirá-la da gaveta para este CD.
Raimundo Fagner e Zeca Baleiro se completa com uma safra inspirada de músicas românticas, entre as quais minha favorita é Hotel À Beira-Mar, com sua melodia envolvente e sua letra impressionista, repleta de imagens como "Vejo a luz do Mucuripe/Belo inútil videoclipe/Blues amargo de razão". Com o lançamento do disco, os dois parceiros pretendem voltar aos palcos para executar o repertório ao vivo, deixando de lado temporariamente suas carreiras individuais. É uma decisão acertada. Um casamento artístico tão bem sucedido merece durar mais do que uma lua de mel.
“Baladas do Asfalto e outros blues”
Por Dionísio da Cruz - poeta e jornalista - junho/2005)
Depois da bem-aventurada parceria com Fagner em 2003, Zeca Baleiro volta ao maravilhoso mundo do disco com “Baladas do Asfalto e outros blues”, seu 5º álbum de inéditas. Maduro e com total domínio de seu ofício, o maranhense desfia neste novo trabalho um repertório de canções que soam como clássicos desde a primeira audição, e onde lança mão de todos os trunfos que acumulou nestes oito anos de carreira discográfica - melodias certeiras, arranjos elaborados e poesia em alta voltagem, tudo com leve toque on the road, faceta explicitada tanto no título como no projeto gráfico primoroso assinado por Luciane Ribeiro, “capista” (como se dizia nos bons velhos tempos) de Baleiro desde “Vô Imbolá”.
Zeca Baleiro é daqueles artistas que não se resignam com o sucesso dos seus projetos, está sempre atrás de agulhas no palheiro. Assim ele vem forjando ao longo dos anos um imaginário todo próprio, múltiplo, calcado na diversidade mas também capaz de recortes muito específicos. Esse imaginário baleiriano – do artista livre, plural, com vocação para a “promiscuidade” estética, mas de valores artísticos muito definidos - sempre estabeleceu com o seu público valiosas cumplicidades. Neste “Baladas do Asfalto”, Zeca privilegia sua persona baladeira, com alma bluesy e certo approach rock’n’roll, coisa que já se anunciara em “Líricas”, seu disco mais denso e despojado, um disco, segundo suas próprias palavras à época do lançamento, “mais de poesia que de música”.
Enquanto ali ele derramava seus versos sobre bases de violão, basicamente, com poucos recheios instrumentais em registro que tendia mais ao melancólico, aqui Zeca toca acompanhado de uma superbanda, o que confere ao disco maior vibração. O punch que se ouve nas gravações deve-se em parte ao fato de terem sido feitas praticamente ao vivo no estúdio, com pequenos overdubs e mais nada. “Posso dizer que é o meu primeiro disco de banda, o espírito era esse, de tocarmos juntos e levarmos calor pro disco”. Calor que se experimenta nas treze faixas do trabalho, sob a batuta dos produtores Walter Costa e Dunga à frente de um dream team da música pop – Billy Brandão e Tuco Marcondes, mestres do riff, dividindo violões, guitarras e outras cordas; Marcelo Costa, ao modo de um Ringo Starr brazuca, com levadas descomplicadas, precisas e originais; o próprio Dunga no baixo e eventuais programações, e Humberto Barros com seus teclados vintage. Samplers adicionais e sutis programações ficaram a cargo de Walter Costa. Há muito pouco de eletrônico no disco, por isso ele soa tão vivo, ou, pra usar uma palavra da moda, tão “orgânico”.
Não me espantaria se o disco se chamasse “Canções Para Ouvir na Estrada”. A estrada, aliás, parece um ícone bastante caro ao compositor, pois aparece disfarçada ou revelada em vários insights poéticos do disco, que abre solar e romântico com “Versos Perdidos”, parceria tripla de Baleiro com Nosly, um dos seus primeiros parceiros musicais dos idos tempos de São Luís, e Fausto Nilo, um dos mais recentes parceiros do artista, com quem compõe com frequência desde o trabalho dividido com Fagner. Vocais a
Então vem “Balada do Asfalto”, a canção-mote do disco, a carta de intenções do compositor, menestrel perdido e desadaptado debaixo do bombardeio de informações sem qualidade, da poluição amoral e cínica da publicidade invadindo o espaço público, antes reservado ao sonho e ao lazer, à poesia e ao passeio de domingo. O sonho acabou e o poeta mostra saber disso, mas parece querer mostrar que outros sonhos ainda são possíveis. Nesta canção, Zeca retoma um verso-emblema de “Líricas”,escondido numa vinheta três minutos após o fim daquele disco – “a alma é o segredo do negócio”. Algo que confirma a coerência e sentido de continuidade nos trabalhos do artista.
“Cachorro Doido” é uma velha canção pinçada do baú do Baleiro. Feita em 89 com o poeta conterrâneo Fernando Abreu, é revelador de uma fase muito voltada para o rock e o blues. A citação dos Mutantes não terá sido mera coincidência. O trem segue com “Meu Amor Minha Flor Minha Menina”, canção curiosa, típica do universo de referências do compositor. Rastros de Jorge Ben, Led Zeppelin e Red Hot Chili Peppers podem ser notados diluídos no engenhoso arranjo, com vocais em estilo black vagaba, já explorados pelo artista em seus discos anteriores. Versos marcantes como “solidão não cura com aspirina”; “até um canalha precisa de afeto” ou “antes o atrito que o contrato” fazem da canção um número à parte no disco.
A estrada continua com “Flores no Asfalto”, originalmente um reggae gravado pela banda maranhense Manu Bantu. A parceria com o reggaeman Gerson da Conceição aqui ganha registro de road song, balada cheia com leve acento soul e vocais gospell. Parceria recente com Fernando Abreu, letra de ótimos achados e discreto erotismo, “Alma Nova” vem na seqüência, com pinta de hit e arsenal de clichês com que Zeca costuma brincar sem pudores.
Literalmente feita na estrada, “Balada do Céu Negro” é a primeira parceria com o músico Tuco Marcondes, talentoso multi-instrumentista e figura sempre constante nos seus discos e shows. O refrão a
Momento sublime do disco vem a seguir com a canção “Cigarro”. O verso inicial (“a solidão é meu cigarro”) anuncia o derrame de achados poéticos que virá. Lui Coimbra assina o arrebatador arranjo de cordas que orna o poema. Dedicada a Roberto Carlos, “Muzak”, antes gravada por Rita Ribeiro, faz menção a Arari (“estou aqui em Arari e Nova York”), cidade de origem de Baleiro, onde nasceram seus pais e irmãos, sua “Itabira na parede”. Espécie de elegia ao compositor popular, ao seu poder de abrangência e contaminação, a letra alterna certa carga emocional com uma boa dose de auto-ironia: “na ante-sala do dentista ouço meu muzak/ me entorpeço esqueço meu coração, frágil badulaque”.
Outra parceria com Fausto Nilo,“Quando Ela Dorme
Nessa pegada, Zeca Baleiro segue ocupando seu lugar na cena musical brasileira, deixando claro a que veio em cada trabalho que realiza. O artista parece ter ainda muitas balas na agulha pro futuro – planeja para breve um cd infantil, um de samba, outro de reggae e afins e um outro de canções eróticas. Zeca tem anseios de cantor popular, mas não abre mão da inteligência (que neste caso não se confunde com esnobismo), da poesia e da coerência estética. Não teme o abraço do público, mas não parece disposto a “facilitar as coisas” para alcançar qualquer popularidade. Faz música para povoar a vida das pessoas, não para satisfazer a sanha egóica de críticos e músicos que se consideram “eleitos”. Com isso, busca restaurar o grande e mítico sentido da palavra popular, e mesmo da música popular. Faz-se assim um dos nomes mais representativos da nova música brasileira, livre, aberto, desprezando rótulos e prateleiras de gêneros. Se, como ele próprio diz, só lhe falta “aprender o silêncio”, a nós só nos cabe dar ouvidos à sua voz grave, dotada de lirismo e humor, compaixão e ironia. Zeca é um artista que pensa, pensa muito sobre tudo o que faz, mas canta com a alma. Não deve ser à-toa que há tantas referências à palavra alma no disco. Vai ver ele tem mesmo razão: a alma é o segredo do negócio.
Fonte: www.zecabaleiro.com.br